quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Fernando Pessoa era diferente e misterioso


As condições do prestígio



Aqui fica um metódico exercício mental de Fernando Pessoa por palavras dele próprio:


«Descreveu Carlyle a humanidade como sendo um vaso cheio de cobras, cada uma d'elas tentando erguer a cabeça acima das de todas as outras.

A frase, aparentemente simples, assenta contudo em uma intuição que conviria que os psicólogos e os sociólogos meditassem de perto — o amor ao prestígio como grande anseio humano, a vaidade como qualidade primária do homem social. (…)

Não é mais a vaidade que a confiança no efeito do valor próprio. A confiança só no valor próprio, que não no efeito d'ele, é outra coisa, e chama-se orgulho. Podem coexistir, podem não coexistir. Tão contraditória é a aparência da condição humana, que, podemos confiar no efeito de nosso valor, sem confiar nesse valor mesmo. É que na vida do espírito a acção precede sempre a consciência; movemo-nos antes que o queiramos.

Seja como for, a importância social da vaidade é implícita na definição, (que demos) d'ela. Ao passo que a confiança no valor próprio, porém não no efeito d'ele, — isto é, na aceitação d'ele por outrem — intimida e paralisa o esforço, pelo receio da desilusão e da dificuldade; a confiança no efeito d'esse valor necessariamente estimula para a acção.

Há por isso um sinal distintivo, pelo qual se diferençam os orgulhosos dos vaidosos: os orgulhosos são tímidos, os vaidosos são audazes. Há quem seja cumulativamente orgulhoso e vaidoso; quem o é será tímido e audaz ou intermitentemente, ou em manifestações diferentes do espírito.

Se a vaidade é mais ridícula que o orgulho, é que é por natureza activa, e se revela sempre; o orgulho, como se esconde, mal pode aparecer onde o escarneçam. Por isto, e ordinariamente, tem-se a vaidade por baixa, e por nobre o orgulho. Nem um, nem outro, é nobre ou deixa de sê-lo. Pela razão já exposta — a essência activa da vida —, a vaidade é mais vulgar, o orgulho — sobretudo o orgulho sem, ou com pouca, vaidade — raro. Da sua raridade se deriva — (assim) como de seu menor ridículo e de sua pouca incidência, por inerte, sobre outrem — o mito da sua nobreza.

É a vaidade a mestra do esforço, o sal da acção, o alimento da vida. Todo homem quer ser mais que os outros, dentro da esfera de ambição que a sua fantasia lhe determina.(…)

Como o orgulho vive para dentro, pensando e sentindo, e a vaidade para fora, operando, resulta que, ante o conseguimento alheio, o primeiro movimento de um é o desconsolo e o tédio, da outra o despeito e a inveja. A inveja é a qualidade primária da comparação social: gera as intrigas e as malícias de que se compõe a quotidianidade da vida; estimula rancorosamente o esforço que se vai cansando; é a matriz de quase todas as censuras e de todas as revoluções.

Tal é a realidade da vida humana: a vaidade como base, a inveja como meio, o progresso como fim. Certos há, porém, que escapam à inveja do comum dos homens. Ao sentimento, que despertam, e pelo qual fogem a essa inveja, chama-se ordinariamente prestígio. O prestígio é, pois, aquela imposição da nossa personalidade aos outros, que não lhes desperta a inveja.»


Pessoa Inédito. Fernando Pessoa. (Orientação, coordenação e prefácio de Teresa Rita Lopes). Lisboa: Livros Horizonte, 1993.


Continua ...


2 comentários:

Diário de uma adolescente disse...

Amor temos de combinar algo! :)
Beijinhoos

luis nuno barbosa disse...

essa descrição faz-me inevitavelmente pensar em Fernando Pessoa, Sophia de Mello Breyner Andresen e António Gedeão.