segunda-feira, 16 de agosto de 2010

E porque Pessoa será sempre Pessoa...

(...vejamos algo dele que não sejam versos.)

Raciocínio - Um das regras fundamentais do raciocínio

«Uma das regras fundamentais do raciocínio é distinguir o fundamental e o acidental em determinada teoria, distinguir a teoria essencial e a aplicação particular que um ou outro lhe dê. Assim, se discutirmos o problema da existência de Deus, devemos começar por definir o que se entende por Deus nesse problema. Se se entende, como é de presumir, um ente espiritual supremo, criador do mundo, então, nesse sentido, examinaremos o problema, não o misturando com o problema acidental da existência ou não existência de um Deus omnipotente, ou bom, ou infinito. Este último é um conceito particular de Deus, não o conceito geral. É concebível um ente criador finito do mundo; é concebível um criador do mundo que não seja mau nem bom; é concebível um criador do mundo que não seja omnipotente. Cumpre, em suma, distinguir a ideia geral de Deus da ideia particular de Deus na Igreja Católica ou qualquer outra Igreja. Sem fazer esta distinção, não estaremos examinando o problema, mas outro problema.

Por isso o que há de fundamental em raciocínio é definir os termos que se vão empregar, ou os que se vão analisar. Muitas discussões resultam frustes e inúteis porque, girando em torno de certo termo, cada contendor dá a esse termo um sentido diferente; de modo que, julgando que estão discutindo a mesma coisa, estão, ao contrário, discutindo coisas diferentes. Já tem sucedido, por este erro, estarem discordando contendores que estão de acordo, e que o verificariam logo se começassem por definir, limitar, compreender o que é que, em suma, estão discutindo.»

Textos Filosóficos . Vol. II. Fernando Pessoa. (Estabelecidos e prefaciados por António de Pina Coelho.) Lisboa: Ática, 1968. - 140.

Retirado de: Arquivo Pessoa


Nesta pequena exposição de Fernando Pessoa sobre a argumentação compreendemos o que pode muitas vezes levar a que duas pessoas com uma mesma opinião, discutam em “sentidos opostos”, ignorando um consenso que podia estar tão facilmente ao alcance de ambos. Esta falta de acordo no debate é motivada por uma troca de termos, ou mais precisamente pela troca do sentido dos mesmos.

Ora, podemos induzir que a controvérsia na argumentação é extremamente susceptível de suceder na língua portuguesa. Afinal de contas, somos uma língua rica em sinónimos, homónimos e afins. E, para que tal não aconteça, devemos pôr de parte aquilo que é uma fraca argumentação (aquela que porventura está neste momento a ser contestada por uma mente esclarecida por não fazer jus ao seu nome), assente em interpretações subjectivas e particulares do problema em discussão, por parte de quem discursa. E, desta forma, apostar no primor de uma boa discussão filosófica, identificando o problema essencial e fazendo incidir o debate sobre este mesmo. É ou não é assim?

Nota: Não “cair” em questões capciosas talvez seja igualmente um bom princípio.


6 comentários:

andre disse...

Não conhecia esta faceta prosaica de Pessoa, sou mais virado para a poesia dele. Obrigado pelo elogio ao poema, eu sei que ela está orgulhosa.

Continuação de boa escrita,
e até à próxima.

S.S. disse...

Fernando Pessoa, o poeta controverso e minha grande referência.
Simplesmente inacreditável :D

luis nuno barbosa disse...

realmente, o título diz tudo, Fernando Pessoa é qualquer coisa de magnífico.
obrigado pelo comentário no "se as letras falassem" (:

luis nuno barbosa disse...

não é preciso, mas eu gosto (:
e obrigado também pelo comentário ao poema (:

luis nuno barbosa disse...

se tenho talento ou não, não cabe a mim julgá-lo, mas trabalho diria que não. quando começo a escrever, o poema sai-me naturalmente, como se o ouvisse dentro de mim.
obrigado pelo comentário (:

luis nuno barbosa disse...

eu acho que isso se aplica mais à escrita narrativa. na poesia acho que tudo o que é necessário é saber escutar, escutar o silêncio do mundo!